Comida, classe e política

Nos últimos tempos a alimentaçom tornou-se o terreno predileto para as guerrinhas culturais conservadoras. Sabe-o bem o Ministro de Consumo, Alberto Garzón, que se viu no centro de sucessivos furacáns mediáticos: primeiro, por um chamamento à reduçom do consumo de carne; depois, polo anúncio da proibiçom da publicidade dirigida ao público infantil de doces e bebidas açucaradas, medida à qual o responsável de comunicaçom online do PP respondia num tuit onde aparecia rodeado de todo tipo de bolaria industrial;[1] ainda, a sua advertência sobre os riscos para a saúde do mix de gorduras que alguns fabricantes estavam a incluir no roscom de reis, em substituiçom da nata, abriu umha nova guerra da direita por volta das tradiçons natalícia; por último, o tsunâmi produzido nos últimos dias polas declaraçons no The Guardian em contra das macrogranjas.[2]

Além das vicissitudes do ministro espanhol, no contexto da permanente polémica por volta da chamada “esquerda pós-moderna”, um articulista achava na nova hamburguesa vegetariana da Burger King nada menos que a culminaçom de algo que teriam iniciado “os pensadores franceses Foucault, Derrida ou Deleuze”,[3] enquanto outro, crítico com os supostos efeitos do feminismo hegemónico na masculinidade, nos lembrava a categoria burlesca de “homem de soja”[4]. Os exemplos poderiam-se multiplicar, posto que é um fenómeno internacional,[5] mas respondem todos à mesma estratégia discursiva: os gostos gastronómicos dos esquerdistas delatariam a sua realidade como setor social privilegiado e afastado do verdadeiro “povo”, especialmente do masculino.

Thomas Frank descreve umha estratégia retórica das elites conservadoras estadunidenses através da qual interpelam às classes populares, e que o escritor denomina “progressismo do café latte”, um café expresso com espuma de leite que acabárom convertendo em emblema de classe e alvo dos seus ataques. Conforme a descriçom de Frank, a teoria do progressismo do café latte consegue deixar num segundo plano o debate político por volta dos interesses económicos de republicanos e democratas, tornando-os irrelevantes: “No entanto, som os lugares em que mora a gente e as cousas que bebem, comem e conduzem os fatores críticos, as pistas que nos conduzem à verdade. Em particular, as cousas que se di que os progressistas bebem, comem e conduzem: os Volvos, o queijo importado e, sobretudo, os cafés latte.”[6] Assim, teria-se imposto umha sorte de sociologia espontânea que, enlaçando com os estereótipos mais familiares, facilitaria às elites conservadoras, senom um achegamento às classes populares, quando menos umha ferramenta para desligar a identificaçom destas com a esquerda.

Haveria que acrescentar à análise de Frank que, se estas estratégias costumam ter bastante sucesso, é porque enraízam numha base sociológica mui real. Bourdieu apoiava-se em La Distinction num abrumador material empírico para concluir que: “Cultura convertida em natura, isto é incorporada, classe feita corpo, o gosto contribui a fazer o corpo da classe […] o corpo é a mais irrecusável objetivaçom do gosto de classe” e, portanto, os gostos em matéria de alimentaçom umhas das disposiçons mais profundas e perduráveis do habitus.[7]

Todos temos experiências da perdurabilidade e centralidade identitária destas disposiçons:  o homem de negócios de origem camponês que, nas festas da associaçom de empresários, preferiria umha boa carne ao caldeiro aos luxos da cozinha moderna, é o exemplo a contrario dessa imagem, largamente cultivada pola direita, do populista de esquerdas que nom poderia provar um prato de vísceras sem se revolver. Ainda, nom se trata apenas dum terreno onde as diferenças de gostos de classe sejam especialmente acentuados, o qual nom teria porque ter necessariamente umha traduçom política, mas neste caso “o arte de beber e de comer é sem dúvida um dos poucos terrenos que ficam em que as classes populares se oponhem explicitamente ao arte de viver legítimo”[8].

Talvez por essa razom a estratégia do populismo gastronómico seja tam recorrente. Se nos detemos a inventariar as denominaçons burlescas ou denigratórias que em diferentes países se fôrom forjando contra a esquerda cultura –as equivalentes à gauche divine–, resulta que na maioria a alimentaçom ocupa um lugar central. Em muitos é umha bebida-emblema a que se usa para denunciar o elitismo cultural ou umhas origens de classe alta. Assim, conta-se a “esquerda Ballantine’s” no Brasil, a “whisquierda” no Chile, o “socialista vinho tinto” na Dinamarca e Finlândia, o “champagne socialism” no Reino Unido…; e em muitos outros um alimento caro: o “socialismo salmom afumado” na Irlanda ou os “comandos do bistec” nas Filipinas…

Às vezes a categoria denigratória fai mais referência ao lugar onde ou à maneira como se consome o alimento que a ele próprio, como  é o caso da “izquierda de cafetín” que se di em Venezuela. Um dos termos deste tipo mais sucedidos, e exportado posteriormente a muitos países (cruza os Pirineu em 1988 através do diário Cambio 16), é o francês gauche caviar, criado polos opositores a Mitterrand que, desta maneira, acussavam os herdeiros ideológicos da revoluçom russa de apenas conhecerem a URSS polo caviar. Na França essa batalha política tornou-se habitual nas campanhas eleitorais, forjando também, a esquerda, termos denigratórios para os rivais, como “droite jambon-beurre”, que denunciam esta estratégia populista em público que agocharia uns gostos privados muito mais elitistas. O caso de Jacques Chirac, se bem no seio da direita, ilustra bem esses combates ideológicos na gastronomia: perante o seu costume de exibir em público gostos populares (o prato de cabeça de bezerro –tête de veau–, a cerveja e as feiras de gado), o seu rival eleitoral em 1995, Édouard Balladur, acusou-no ironicamente de ser “umha esquerda caviar a descobrir a cabeça de bezerro”, pois eram bem conhecidos os sofisticados gostos privados de Chirac.

Mais recentemente, a esquerda latinoamericana tem ensaiado ultimamente estratégias discursivas que se apoiam no valor social e de classe da comida: os apelos de Lula da Silva ao “churrasquinho” como umha espécie de “bom viver” (pense-se no popularíssimo Músicas para Churrasco, de Seu Jorge)  ao que as classes populares tenhem direito. José Mujica , por sua parte, tem encorajado o peronista Alberto Fernández a implementar na Argentina a sua política do “asado del Pepe”, criada para que num grande produtor de carne como é o Uruguai, a populaçom. Mediante esta fórmula Mujica pediu que se destinassem cortes populares (a chamada “falda parrillera”) ao mercado interno, conseguindo manter as exportaçons sem que as classes mais populares vissem afetado o seu consumo cárnico por causa da suba de preços.

No caso galego as atuaçons políticas de Manuel Fraga foram acusadas de “populismo gastronómico” por Manuel Rivas na imprensa e por Bautista Álvarez no Parlamento.[9] O político de Vilalva já se especializara nessa estratégia na oposiçom ao governo do PSOE no Congresso dos Deputados, onde traduzia as suas críticas em economia às metáforas domêsticas do preço das lentelhas e dos garavanços (muito antes do opeço de José Luis Rodríguez Zapatero ao nom saber o que custava um café), e usou-na assiduamente na sua etapa galega. Como ministro franquista já dera a máxima importância às festas gastronómicas, onde cementara muita da sua popularidade e fora tecendo umha densa rede clientelar.

Nelas nom se trabalhava esse populismo de denúncia do “progre”, mas si de identificaçom direta com os gostos populares por parte da autoridade, além de criarem importantes redes sociais, pois eram festas que punham em valor produtos autóctones, incidindo mui diretamente na economia local e favorecendo a criaçom de estruturas informais, às que também se somava gente da cultura. Isto é, tinham um valor político enorme. A cultura política do nacionalismo, assim como a começos do s. XIX já denunciava o “regionalismo de lacom com grelos”, acabou decantando umha associaçom quase unívoca entre gastronomia e caciquismo, que praticamente deixava pista livre à apropriaçom “popular” da mesma. Contudo, as exceçons som notáveis (a participaçom de militantes do chamado movimento nacional-popular na criaçom de festas como a do porquinho em Moranha, ou a do vinho no Condado) e mereceriam um estudo mais pormenorizado como exemplo de prática política.

Bibilografia


[1]https://twitter.com/ismaelquesada/status/1453780829122056197

[2]Sam Jones, «Spanish should eat less meat to limit climate crisis says minister», The Guardian, 26/12/2021, disponível em: https://www.theguardian.com/world/2021/dec/26/spanish-should-eat-less-meat-to-limit-climate-crisis-says-minister

[3]Alberto Olmos, «La traición de Burger King: eso no es una hamburguesa», El Confidencial, 27/10/2021, disponível em: https://blogs.elconfidencial.com/cultura/mala-fama/2021-10-27/burger-king-hamburguesa-vegetal_3313268/

[4]Juan Soto Ivars, «El reconr de Bogart: por qué algunos hombres buenos se están volviendo malos», El Confidencial, 21/12/2021, disponível em: https://www.elconfidencial.com/cultura/2021-12-21/rencor-bogart-masculinidad-toxica-feminismo_3345008/

[5]Para o caso britânico, por exemplo, pode-se consultar: Jonathan Nunn, «From polenta to lemons: the everyday foods demonised by Britain’s class war», The Guardian, 02/10/2021, disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/oct/02/food-choices-proxy-class-britain

[6]Thomas Frank, ¿Qué pasa con Kansas? Cómo los ultraconservadores conquistaron el corazón de Estados Unidos, Madrid, Acuarela & A. Machado, 2008, p. 47.

[7]Pierre Bourdieu, La distinción. Criterio y bases sociales del gusto, Madrid, Taurus, 1998, p. 188.

[8]Ibidem, p. 179.

[9]Pode-se consultar: José Rúas Araújo, El discurso político de Manuel Fraga, tese de doutoramento, Madrid, Universidad Complutense, 2003.

SOBRE O AUTOR

Carlos Calvo Varela. Ex-preso político, foi membro do conselho de redaçom do Novas da Galiza e colaborador em meios como Sermos Galiza / Nós Diario, Praza Pública, Luzes, O Salto Galiza ou o Jornal Mapa.

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